terça-feira, 6 de março de 2007

Nas Asas da Memória!


Folheio, com a devida reverência, um alfarrábio de 76 anos (Antologia de poemas, de Augusto Gil, 1923 – Livraria Bertrand, Lisboa) publicado ainda em vida do então muito popular escritor português. A simples leitura do título do poema Balada na Neve abre-me uma grande janela na memória.


"Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim..."

Inexplicavelmente e com facilidade, posso dizer de cor estes e os outros versos do poema. Vejo, ainda, a cena da infância evocada com uma clareza assustadora: fim do ano lectivo. Festa. Presença dos pais e autoridades (directoria do Colégio, pároco, professores) A menina de 8 ou 9 anos, sobe ao palco e recita Augusto Gil

"É talvez a ventania;
Mas há pouco, há poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...
Quem bate assim levemente,
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento, com certeza.
Fui ver a neve caia,
Do azul cinzento do céu,
Branca e leve, branca e fria...
-Há quanto tempo a não via!
E que saudade, Deus meu!
Olho-a através da vidraça
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...
Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança,
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos"...

Chorando copiosamente, a menina não consegue terminar o poema. O pároco acode, sobe ao palco, dizendo-se emocionado com a emoção da menina que continua a chorar...
Vingada, a memória apagou de vez o poema. Nem título, nem autor, nem um só verso puderam ser lembrados nos posteriores 30 e poucos anos. Agora, como se uma disquete fosse inserida na memória, o poema ressurge, verso, após verso, mas... (e aqui entra o factor que só ao humano pertence) só até ao exacto texto que provocou aquela emoção da menina diante do infortúnio infantil.
Busco no livro a parte final que a memória novamente recusa

"E descalcinhos, doridos...
A neve deixa inda vê-los,
Primeiro bem definidos ,
-Depois em sulcos compridos,
Porque não podia ergue-los
Que quem já é pecador
Sofra tormentos... enfim!...
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa,
ai neve na natureza...
E cai no meu coração."

Apagaram-se alguns versos na memória, mas a menina ficou irremediavelmente fatalizada para a poesia.
Essa menina fragilizada e sensível só pode
ser quem vos escreve!
Postado por M.

2 comentários:

luis disse...

Que belas recordações,com este Teu texto.
Gostei muito deste teu cantinho

Fica bem

Bjss
luis

A Voz do Fado disse...

Luis reviver o passado é já um presente para quem o tem e eu várias recordações tenho para recordar.
Bjo.
Mila